domingo, 3 de dezembro de 2017

IN MEMORIAM DE MÁRIO NETO (1942-2017)



O engenheiro e professor Mário Neto, cuja morte surpreendeu amigos e admiradores, partiu discretamente, como sempre rendilhou a sua vida, faz esta noite uma semana. Este nosso querido amigo, dedicado companheiro e mestre, não consentiu – na sua proverbial humildade – a homenagem pública que fraternalmente se impunha à admiração e respeito das suas avultadas qualidades humanas e que os figueirenses sabiamente lhe reconheciam. Partiu de rosto levantado, com a honrada obrigação do dever cumprido.

O falecimento do Mário Neto, leitor atento (e crítico) do Almanaque Republicano [como antes, do Almocreve das Petas], deixa-nos profundamente consternados: pelo saber que irradiava, na inteligência, bondade e generosidade intelectual que repartia e o engrandecia. Mário Neto, como tão bem disse [in Diário das Beiras, 30/11/ 2017] o nosso comum amigo Guedes Correia era “uma figura quase renascentista, ao estilo de Leonardo da Vinci ou de Pico della Mirandola, capaz de ter um discurso motivante e encorajador sobre a humanidade e sobre o mundo a partir da sua experiência pessoal, das suas leituras, das suas viagens”.

Mário Neto foi nosso distinto professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e, na lei que regula os destinos, tivemos o privilégio de nos ter honrado com a sua amizade e companheirismo. A sua intensa luz soube-nos aproveitar este tempo de utopias, essa “grande paz exterior das coisas” [H.H.] com a serenidade prudente que o sentimento de liberdade exige. E que Mário Neto tão ciosamente buscava, na sua perfumada independência e na benevolência do seu pensamento. O seu legado pela igualdade e dignidade dos Homens, de que era cultor irredutível, eleva-se admirável e eloquentemente. E não será esquecido.

Até sempre, Mário Neto.

Mário António Figueiredo Neto nasceu na Figueira da Foz a 19 de Fevereiro de 1942. Fez os seus estudos no liceu da Figueira da Foz até ao 2º ano, terminando depois o ensino secundário no Liceu D. João III (actual José Falcão). Entretanto foi um curioso desportista, do futebol à prática de ténis de mesa, representando nesta última modalidade o Ginásio Clube Figueirense. Partiu para Lisboa, matriculando-se no Instituto Superior Técnico [IST], em engenharia de máquinas, ou engenharia mecânica [o Núcleo de Estudos de Engenharia Mecânica data de 1960 e foi o primeiro e único a trabalhar até 1975].

Em Lisboa, residiu numa das várias “repúblicas” que pululavam à volta do IST, onde conviveu (e se fez amigo) com uma geração de estudantes messiânicos [dos católicos progressistas aos futuros membros da FAP/CMLP], intransigente contra a ditadura e o Estado Novo. O cinema (sua grande e eterna paixão) e a vida associativa moldaram-lhe o dom e o ornamento do seu carácter, assumidamente combativo contra a impetuosa repressão cultural e política do seu tempo. Frequentou, então, o movimento do cineclubismo, que dava os seus passos, assumindo a direcção (1964) do Cineclube Universitário de Lisboa [CCUL].  

A crise de 1964-65, consequência dos movimentos estudantis de 1956 e de 1962, torna-o activista consciente dos valores da democracia e da liberdade. O Partido Comunista, então em movimento de rectificação contra o “desvio de direita” [antes, Álvaro Cunhal, que se tinha evadido, com outros camaradas seus, do Forte de Peniche, foi nomeado secretário-geral do partido, em Janeiro de 1960], aprova, em Abril de 1964, o importante relatório, elaborado por Álvaro Cunhal, “Rumo à Vitória. As tarefas do Partido na Revolução Democrática e Nacional”, que marca uma nova linha política de combate e derrube do fascismo. A importância dada à conquista da direcção de movimentos culturais e associativos (caravanismo, cineclubismo, associação de estudantes e associações culturais em geral) é notória, visando politizar amplos sectores da população e em especial, mobilizando os estudantes, então ávidos de liberdade e modernidade [sobre este curioso assunto, veja-se: Guya Accornero, Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974), 2009]. Assim, Mário Neto integra-se nesse movimento, que irrompe à escala nacional (e sabe-se o efeito que teve na greve académica de 1969, em Coimbra; de outro modo, tenha-se em conta o começo dos protestos contra a guerra do Vietname, na Universidade de Berkeley, também em 1964) e, particularmente, no Instituto Superior Técnico     

No dia 24 (ou 25?) de Novembro de 1964, Mário Neto é preso na rua pela PIDE. Então na direcção do CCUL [cf.Liberdade para os Estudantes Presos”, 1º informação das Comissões de Apoio; antes já tinham sido detidos inúmeros estudantes de várias Faculdades, entre os quais Saldanha Sanches, Rui Faure da Rosa, …], Mário Neto (pseudónimo Cândido) é acusado de ser dirigente do PCP no IST, não tendo prestado à PIDE qualquer declaração [outros dirigentes então presos e acusados de ligação ao PCP, seriam: José Crisóstomo Teixeira (pseud. Gonçalo; controlaria superiormente as actividades da Faculdade de Ciências, IST, RIA, Belas-Artes, ISCEF, liceus e escolas técnicas), Humberto António Caria Lucas (pseud. Hugo; juntamente com o Mário Neto seria quem orientava as actividades do IST) – ver jornal República 28/01/1965, p.2 e 15].

No Aljube partilha a mesma cela com Mário Lino (Milo), Fernando Rosas (Rui) e outros mais, quase todos presos na sequência da vaga de prisões verificadas a 21 de Janeiro de 1965, por delação do controleiro do PCP para o sector estudantil Nuno Álvares Pereira [NAP] (pseud. Moreira – ver sobre este assunto, Irene Pimentel, “Vitimas de Salazar”). Refira-se que o caso NAP não esta completamente esclarecido, colocando-se a hipótese de ter sido, ele próprio, um infiltrado da PIDE. Por último, diga-se que a vaga de prisões verificada decapitou o sector estudantil de Lisboa do PCP e curiosamente, como AQUI referimos, deixou incólume o sector de Coimbra, então sob direcção de Valentim Alexandre, ou Vieira. Mário Neto é julgado em 11 de Agosto de 1965, no Plenário Criminal Auxiliar da Boa-Hora, tendo sido absolvido, saindo em liberdade (cf. Diário de Lisboa, 12/08/1965, p. 2).   

Lecciona na Escola Emídio Navarro (Setúbal) em 1965/66 e na Escola Afonso Domingues  (Lisboa) no ano de 1966/67, tendo sido afastado compulsivamente desta Escola a 14 de Junho de 1967, por motivos políticos, pelo Despacho do Conselho de Ministros de 13 de Junho desse ano.  

Cumpre, depois, serviço militar, tendo sido incorporado a 12 de Julho de 1971, saindo a 27 de Setembro de 1974 ( esteve às ordens de Vasco Gonçalves).  Termina o curso em engenharia e, de imediato, matriculou-se e frequentou, com aproveitamento, Economia no ISCEF   

 


No regresso à Figueira da Foz, no ano letivo de 1974/1975, lecionou na Escola Industrial Bernardino Machado. Depois do 25 de Abril, manteve-se militante do PCP, integrando como deputado a Assembleia Municipal. Demitiu-se, em discordância política com o Partido, ainda quando era deputado pela Assembleia.

Mário Neto teve ensejo de integrar o grupo inicial desse curioso projecto figueirense, o periódico “Barca Nova” [semanário democrático progressista;1, 10 de Novembro de 1977 ao nº 241, de 3 de Junho de 1983], sob impulso (principalmente) de Joaquim Namorado e José Fernandes Martins, em torno da Empresa Jornalística do Mondego, SARL, tendo colaborado com textos e pertencido desde a constituição da sociedade, ao seu Conselho de Administração [juntamente com Carlos Neto, presidente, e Wilson dos Santos, que foi, ao mesmo tempo, o primeiro director].

A partir de 1975/1976, Mário Neto é assistente convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, ministrando a disciplina de Microeconomia. Aposentou-se em Dezembro de 2008.   
 
Mário Neto era membro do Grande Oriente Lusitano há mais de duas dezenas de anos, fazendo parte da Loja Fernandes Tomás, da Figueira da Foz.

Faleceu no final do dia 26 de Novembro de 2017.

J.M.M.

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