quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

AS SOCIEDADES PATRIÓTICAS – PARTE II


 
AS SOCIEDADES PATRIÓTICAS – PARTE II

[Extracto] “Os Estados Peninsulares e as Sociedades Patrióticas” - (A propósito do discurso de José Liberato Freire de Carvalho na noite de 24 de Julho de 1822)”
José Manuel Martins

NOTA: As Sociedades Patrióticas (Parte II) é a continuação do prefácio ao livro “Memória da Liberdade e do Constitucionalismo. Madrid-Lisboa / 1822”, que apresenta textos de José Liberato Freire de Carvalho e João Baptista da S. L. de Almeida Garrett, obra republicada pela Comissão Liberato (com assento em terras do Mondego) a 7 de Julho de 2016, em Coimbra. A PARTE I pode ser lida AQUI.

O Triénio Liberal (1820-1823)

É grande a similaridade entre o estabelecimento do regime monárquico-constitucional em Espanha e em Portugal [7], mas não podemos esquecer que a dinâmica do liberalismo peninsular estava ligado ao movimento geral que se estendeu por toda a Europa e no qual os aspectos económicos, as invenções técnicas, o progresso industrial e as estratégias de expansão dos países mais desenvolvidos - como a Inglaterra e a França -, jogavam um papel decisivo: o que não será de todo indiferente [8].
 

O Triénio Liberal (1820-1823) nos dois Estados Peninsulares é aparentemente convergente, mas um exame à situação torna tudo mais complexo, sendo o seu processo bastante ambíguo. Alguns factores [9] são comuns aos dois estados: as inúmeras contradições ideológicas, económicas e sociais dentro da monarquia absoluta, que precedem a mudança; as alterações provocadas pelas invasões francesas que animam uma opinião pública mais esclarecida; o contágio de matiz ideológico ou revolucionário importado de França e o regresso dos emigrados; a emergência da burguesia, então ainda um grupo social minoritário; a ausência do Rei e da Corte em ambos os países; um aparelho militar subalternizado e sob comando de mãos estrangeiras; o fim dos impérios, com as guerras da independência na América espanhola e a independência do Brasil; a acção dos clubes e sociedades políticas e, principalmente, das associações secretas, apesar da perseguição e montaria encetada a liberais e maçons.

 
A restauração absolutista em 1823, com a mão amiga da Santa Aliança e o eterno conflito entre o liberalismo moderado e o liberalismo radical, retardou o anúncio de uma regeneração [10] nos dois Estados e atrasou o avanço para uma Ibéria contemporânea. De facto, uma Europa a caminho da revolução industrial, com novas dinâmicas administrativas e sociais e profundas alterações das relações sociais, sob forte liderança de uma burguesia empreendedora e esclarecida, encontra nos Estados Peninsulares uma burguesia incapaz de “alterações significativas” [11] e regeneradoras, de que não era alheio o atraso económico nos dois países. Seria, no entanto, o “primeiro assalto à fortaleza” do absolutismo e do legitimismo tradicional, a “primeira grande ofensiva liberal”.

 
É conhecido o conflito que deu origem à Guerra Peninsular (1807-1814) ou Guerra da Independência (em Espanha) e de como confrontados com a resistência das populações ibéricas e com apoio inglês, as tropas napoleónicas são obrigados a retirar da Península. Os acontecimentos nos dois países, no “seguimento da falência da aventura napoleónica”, originaram uma vaga nacionalista, patriótica e liberal, dando início a um longo processo de implantação do primeiro liberalismo, de influências recíprocas. A Constituição de Cádis (1812) terá, por isso mesmo, o seu corolário na Constituição liberal portuguesa de 1822 [12].

 
A elite intelectual liberal que propunha um mundo novo, em Portugal e Espanha, forja-se entre os letrados que o gérmen do iluminismo ilustrou, a partir da reforma pombalina de 1772 [13] (entre nós) e com o afluxo de portugueses e espanhóis emigrados.
 

O século XIX foi um curioso período, profundamente revolucionário, em que a luta para uma nova ordem liberal, mesmo com os abalos sofridos que se conhecem, traz a utopia da cidadania, do idealismo da liberdade individual, liberdade de reunião, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade do comércio, valores que fizeram ruir os escombros do absolutismo e da velha ordem; mesmo já durante o Triénio Liberal, foi visível essa fecundidade cultural, essa “aurora” de luz feita a partir dos clubes, das Sociedades Patrióticas, das lojas maçónicas e por um periodismo virtuoso e combativo. A ruptura política, entre o despotismo e o regime constitucional, estava em marcha.

 
Mas tal não bastou para que (entre nós) o primeiro liberalismo triunfasse, tal a “incipiente e contraditória experiência constitucional tentada pelas Cortes Gerais de 1820-22” [14]. A burguesia não beneficiava dos meios e das estruturas (sociais e mentais) como as que existiam além Pirenéus, onde o capitalismo, arrastado pelo impulso das técnicas, do comércio e da indústria, lutava contra os entraves ao seu próprio desenvolvimento; pelo contrário, a burguesia (com contradições insanáveis entre a burguesia agrária e a comercial) foi, perante as suas insuficiências e bloqueios (reforma dos forais, por exemplo), obrigada a “arranjos políticos” com a velha classe dirigente. Isto é, a Economia Política [15], que já fazia luz em alguns sábios, restou apenas entre os letrados, sem nunca aceder, em rigor, aos patamares do trono e da governação, que manteve o seu espírito conservador e obscurantista. Só a vitória do liberalismo em 1834 - com a derrota do absolutismo e as consequentes legislações inovadoras de Mouzinho da Silveira e Ferreira Borges, apoiadas na reforma da instrução pública [16] de Passos Manuel ou na posterior reforma descentralizadora (1878) de Rodrigues Sampaio - levará ao lento ruir das bases do antigo regime e dos valores tradicionais, possibilitando a “regeneração económica”, o devir de um novo modelo de desenvolvimento [17], enfim, o (hesitante) começo de um “novo mundo”.


[7] Para além dos estudos clássicos sobre a Revolução de 1820, que adiante citaremos, veja-se o trabalho de Manuel Filipe Cruz Canaveira, Liberais Moderados e Constitucionalismo Moderado (1814-1852), INIC, 1988.
[8] Sobre a questão económica nesta fase do liberalismo vintista, consultar entre nós: Fernando Piteira Santos, Geografia e Economia da Revolução de 1820, Lisboa, 1962; Julião Soares de Azevedo, Condições económicas da revolução portuguesa de 1820, Básica Editora, 1976 (2ª ed.).
[9] Ver, principalmente: Joaquim de Carvalho, Período de indecisão e triunfo da corrente regeneradora, História e Portugal (Damião Peres), vol. VII, cap. II, pp. 60-73; Albert Silbert, Le problème Agraire Portugais ao Temps des premières Cortès Libèrales, Paris, 1968; Manuel Fernandes Tomás. A Revolução de 1820, Seara Nova, 1974, com importante prefácio de José Tengarrinha; O Liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX, Sá da Costa, 1981.
[10] O vocábulo “regeneração” foi largamente utilizado e abundantemente citado pela corrente liberal em ambos os países da península (em Portugal, o seu uso é bem anterior ao movimento político de 1851 ou golpe do marechal Saldanha). Sobre o assunto ver: Telmo dos Santos Verdelho, ob. cit; Maria Cândida Proença, A Primeira Regeneração. O Conceito e a Experiência Nacional (1820-1823), Horizonte, 1990; Joel Serrão, Da Regeneração à República, Horizonte, 1990. Ver, ainda, Luís Reis Torgal, A contra-revolução e a sua imprensa no vintismo: notas de uma investigação, Análise Social, 1980, vol XVI, nº 61-62, pp. 279-292.
[11] Cf. Luís Almeida Martins, Um prelúdio de 500 anos de Guerra Civil de Espanha, revista História, Ano XI, nº 115, 1989, p.13.
[12] O pronunciamento militar português (11 de Novembro de 1820) comandado por Gaspar Teixeira, conhecido por “Martinhada”, ao fazer um ultimato ao Governo Provisional (nascido da Revolução de 1820) onde se impunha que “se jurasse a constituição espanhola” de Cádis até à convocação das Cortes, diz bem dos acontecimentos paralelos que decorriam nos dois países, como também pronuncia as profundas divergências que opunha os liberais moderados aos exaltados em Portugal.
[13] No período pombalino, o contacto com a literatura das “luzes” - textos de Locke, Voltaire, Rousseau e dos enciclopedistas em geral (lidos muitas vezes no original), bem como de portugueses como Ribeiro Sanches, Filinto Elísio ou Cavaleiro de Oliveira – é realizado em núcleos restritos, bibliotecas particulares ou Sociedades, como foi o caso de Valença do Minho (biblioteca Diogo Ferrier), Lamego (animado por Agostinho José Freire), Coimbra ou Lisboa (Casa do Risco da Ribeira da Naus, onde pontificava José Bonifácio de Andrada) – ver Luís A. de Oliveira Ramos, Sob o Signo das Luzes, INCM, 1987, p. 135 e segs; sobre a reforma Pombalina na Universidade de Coimbra, ver Maria Eduarda Cruzeiro, A reforma pombalina na história da Universidade, Análise Social, 1988, vol. XXIV, pp.165-210.
[14] Cf. Joel Serrão, Da Regeneração à República, ob. cit., p. 41. Sobre os trabalhos das Cortes Constituintes, no que diz respeito a aspectos de natureza económica, consultar José Luís Cardoso, A legislação económica do vintismo: economia política e política económica nas Cortes Constituintes, Análise Social, 1991, nº112/113, pp 471-488. José Manuel Tengarrinha (Manuel Fernandes Tomás, ob. cit.), aponta o debate da reforma dos forais, da questão do direito da propriedade ou da transferência da propriedade rural (que só se verifica a parti de 1834), como expressão de mero compromisso e que não levava à “destruição das estruturas do Antigo Regime” (pp. 18-22). Ver, também Adrien Balbi, Essai Statistique sur Le Royaume de Portugal, 1822 (aliás, ed. fac-similada pela FEUC, 2004, II vols).
[15] Ver a este propósito, Victor de Sá, Perspectivas do Século XIX, Portugália, 1964, p 17 e segs.

[16] Consultar, sobre o assunto, a excelente obra de Luís Reis Torgal e Isabel Nobre Vargues, A revolução de 1820 e a Instrução Pública, Paisagem Editora, Porto, 1984, em especial o cap. III, Vintismo e Instrução Pública, pp.31 e segs.
[17] O desenvolvimento económico português foi lento e tardio. As invasões francesas, as alterações da estrutura político-colonial com a independência do Brasil, a guerra civil, a ineficiência no ensino e instrução pública, a escassez de capital e existência de uma burguesia dividida, explicam algum do fracasso do modelo político-económico do vintismo. Sobre o assunto ver Jaime Brasil, A industrialização num país de desenvolvimento lento e tardio: Portugal, 1870-1913, Análise Social, 1987, nº 96, pp 207.
 
[A CONTINUAR] - sublinhados nossos
 
J.M.M.

 

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